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Câmera Record

Crônica: Jacarezinho - Um outro ângulo

Repórter do Câmera Record falou sobre a sua experiência em uma das comunidades do Rio de Janeiro

Crônicas|Por Flávia Prado, da Record TV

A pandemia agravou a situação das
famílias da comunidade do Jacarezinho (RJ), principalmente as chefiadas por mulheres negras
A pandemia agravou a situação das famílias da comunidade do Jacarezinho (RJ), principalmente as chefiadas por mulheres negras

Quando comecei a pesquisa para o Câmera Record ouvi de um dos estudiosos desse assunto que o Rio de Janeiro é a síntese do Brasil. É onde as desigualdades gritam diante dos nossos olhos, ainda mais em uma época como essa, em que 4,3 milhões de brasileiros voltaram para a extrema pobreza. Uma cidade de fato partida.

Isso me fez lembrar de uma conversa recente com um conhecido em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, depois de uma gravação para outra reportagem. Ele me contou que, desde o início da pandemia, a situação econômica das famílias do Jacarezinho, zona Norte da cidade, havia piorado muito. A fome estava instalada.

Por isso, voluntários da ONG “Viva Jacarezinho” passaram a buscar, semanalmente, pescados excedentes da Ceasa para distribuir na comunidade. Ele me mostrou fotos impressionantes. Filas enormes se formavam para receber a doação. Era gente demais.

Para registrar tudo isso, eu precisava franquear o acesso da nossa equipe do Câmera Record ao Jacarezinho, uma comunidade não pacificada — o que exigiria uma fase preliminar de negociação, em que pesa a confiança entre o jornalista e suas fontes. Não é simples: acordos desse tipo envolvem comprometimento, seriedade e responsabilidade. O que vale, nesses lugares, é a palavra. E foi com base na minha palavra que a nossa entrada seria autorizada.


No dia marcado, uma sexta-feira no fim de tarde, a equipe e eu partimos para o encontro com meu contato na linha férrea vizinha à comunidade. Uma moto com o presidente da ONG foi na frente abrindo caminho. Nosso carro vinha logo atrás e, na sequência, um outro veículo, também ocupado pelo pessoal da ONG.

Para acessar comunidades cariocas é lei: os vidros, mesmo que sem película de segurança, precisam estar abaixados e o pisca alerta ligado. Motoqueiros apenas sem capacete. As câmeras devem estar desligadas e no chão do carro.


Becos muito estreitos marcam a chegada ao Jacarezinho. Depois de uma pequena ponte, o caminho fica ainda mais apertado. Parece impossível transitar. Motos, carros e pedestres brigam pelo mesmo espaço. O nosso auxiliar técnico, que também é motorista, redobra o cuidado: estamos passando ao lado de uma feirinha de drogas. As barracas expõem cocaína, maconha e lança-perfume. Todas elas vigiadas por homens que empunham fuzis e revólveres. Eles, aliás, observam a movimentação, mas não esboçam nenhuma reação com a nossa chegada. Enquanto isso, moradores circulam a caminho de casa e crianças brincam livremente. Tudo ao mesmo tempo.

Moradores da comunidade aguardam por doação de comida
Moradores da comunidade aguardam por doação de comida

Passada a adrenalina do início, começamos a gravação e, assim que cumprimos um ritual: antes de apontar a câmera para qualquer lugar no Jacarezinho, é necessário avisar. Em um dos dias em que estivemos no Jacarezinho, minha fonte e eu percorremos a pé quatro pontos de tráfico das redondezas para explicar a olheiros e vapores que registraríamos imagens das vielas. E só das vielas. Negociar com homens armados sempre causa tensão, não importa quantas vezes durante a carreira se tenha feito isso. Mas é justamente aí que a história da palavra — um dos pilares da produção jornalística — se torna fundamental. A palavra do jornalista não pode fazer curva. E a minha não faz.


Mas, voltando ao motivo da nossa ida à comunidade: centenas de pessoas aguardavam a chegada do peixe naquele dia. A fome é real. Voltou a assolar com força uma certa parcela de brasileiros, basta ver as estatísticas. Tanto que, assim que o caminhão com os peixes chegou, foi difícil para os voluntários da ONG conter a multidão. As pessoas avançaram na comida, porque a fome tem pressa.

"Como eu fiquei desempregada, o jeito é correr atrás para pelos menos dar alimento aos filhos", conta Daiana
"Como eu fiquei desempregada, o jeito é correr atrás para pelos menos dar alimento aos filhos", conta Daiana

Já passava das dez da noite quando a distribuição terminou. Os bares em volta estavam lotados, afinal era sexta-feira. O dono de um deles nos convidou para comer o peixe que havia restado. Agradecemos, mas dispensamos, pensando nas famílias que ainda poderiam vir buscar aquele alimento. Os moradores insistiram, faziam questão de dividir um prato com a equipe. Era importante para eles.

Sentados em mesas e cadeiras de plástico, jantamos. Eu sou alérgica a frutos do mar e, por isso, sempre evitei comer peixe, com medo de alguma reação. Sem problema: o pessoal logo arrumou um churrasquinho para mim!

Naquele dia, quando tudo acabou, eu estava exausta fisicamente, atordoada com tanta informação e triste por ter presenciado tanta carência, tanta falta do que é básico para a sobrevivência. Eu só tinha uma certeza: era urgente fazer essa situação chegar a milhões de pessoas Brasil afora. Sobretudo para aquelas que se recusam a ver.

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